Eu fui percebendo sua cor voltando aos poucos. A marca do galo na testa não o deixava nem um pouco menos atraente. Pensei em afrouxar um pouco as cordas que fixavam seus braços à cabeceira da cama. Mas preferi esperar que ele recobrasse toda consciência e reclamasse que estava apertado demais. Percebi que ele se movia, mas começava a ter noção de que algo bloqueava seus movimentos, barrava sua vontade de se espreguiçar. Abriu um olho, depois o outro, e vi que ele havia recuperado totalmente a consciência. Não só isso, percebi o choque em seus olhos, ao se dar conta do que estava acontecendo. Li a surpresa transformando-se em raiva, e depois em submissão. Imagino quais seriam suas primeiras palavras, supondo que ele não estivesse amordaçado. Será que lhe faltaria criatividade e ele perguntaria o esperado oh, onde estou? ou o que está acontecendo? Não. Ele não tem nada de óbvio. Todas as expectativas se desfazem em pó.
Eu sorrio, da forma mais doce que eu consigo, e falo com uma voz firme e suave.
“Oi, Augusto.”
Ao me olhar, seu corpo treme se debatendo na tentativa de se soltar dali.
“Calma. Não faça assim. Vai se machucar.”
Mas apenas eu parecia estar preocupado com seu bem-estar. Ele não parecia entender. Seus pulsos ficavam avermelhados, só que em vão. As cordas estavam bem amarradas, não iam ceder. Disse-lhe para ter cuidado com as cordas, mas ele não me ouvia. Me senti angustiado ao vê-lo daquela forma e não sabia mais o que deveria dizer para acalmá-lo. Deitei-me sobre ele na cama e, aos poucos, ele finalmente se rendeu. Com o meu rosto muito próximo de seu ouvido, sentindo o cheiro doce de seu perfume, dizia que assim era bem melhor e que eu apenas queria o seu bem. Eu dizia, sobretudo, o quanto eu queria o seu bem. Naquele momento, seu olhar assustado se fixou no teto e notei uma lágrima rolando vagarosa. Meu coração começou a bater forte. Ele estava mais lindo do que nunca. Ali, tão frágil, aquela lágrima me comoveu de modo que me senti impelido a ajudá-lo. Com doçura, lambi o salgado da lágrima que escorria e disse “Por favor, não chora. Vai ficar tudo bem.”
De repente, aquela proximidade foi me afetando e fui sentindo meu pau intumescendo. Mas aquilo estava errado. Não tinha sido para isso que eu o havia trazido aqui, quase o arrastando, meio grogue por causa daquela merda que eu tinha colocado na bebida dele. Fui sentindo um calor, mas preferi me afastar dele. Ele já não se debatia mais, parecia haver desistido. Somente as lágrimas desciam copiosamente por suas bochechas. A surpresa havia dado lugar a uma espécie de conformidade silenciosa. Talvez ele estivesse pensando uma forma de sair dali. Sentei ao seu lado, e fui mexendo com umas mechas do seu cabelo. Meus dedos corriam por entre eles e eu tentava mostrar pra ele, sem falar mais, que eu estava ali apenas para protegê-lo. Tentei fazer com que a ternura falasse por mim. Mas ele afastou a cabeça o máximo que seus movimentos permitiam. E me olhou com raiva. Começou a gemer sons, primeiro timidamente, depois os gemidos foram se tornando mais nítidos. Ele tentava me dizer algo. Eu tentava decodificar os gemidos como se eles fossem código morse. “Eu te entendo”, ele dizia, “eu te entendo”. Não. Ele não estava entendendo nada. Talvez nem entendesse se eu pudesse começar a explicar que eu tinha sido obrigado a drogá-lo e amarrá-lo a uma cama, amordaçado, para proteger sua vida. Quem entenderia?
Peguei um lenço que estava na mesa de cabeceira, para secar suas lágrimas, quando algo que estava ali enrolado caiu ao meu pé. De súbito, meu coração começou a palpitar e, com a mesma rapidez com que olhei para o rosto dele, passaram por mim todas as possibilidades de fracasso de minha tarefa se, por um descuido desses, ele visse o objeto caído no chão. Estaria tudo acabado. Seria, de fato, o fim.
Ele continuava olhando para mim, cada movimento, mas sem se aperceber do que acontecia à nossa volta. Com calma, recolhi o que havia caído sem fazer qualquer movimento brusco e, finalmente, coloquei-o no meu bolso. Sorri aliviado. Não estava tudo acabado. Ainda.
Ao retornar para a cama, enxuguei as suas lágrimas com o lenço. Então, comecei a me lembrar da primeira vez que o vi, ao longe. Era uma tarde quente de verão, e a luminosidade do parque refletia uma curiosidade inocente e, ao mesmo tempo, quase pornográfica que me atraía como se a sua direção fosse o único caminho possível de ser tomado. Lembro de ter sonhado acordado com tudo aquilo que eu, um dia, faria se pudesse chegar assim tão perto dele. Mas o sonho já era coisa do passado. A inocência já havia escorrido pelo ralo da vida e o tempo se tornava valioso. Cada segundo. Então nada de carícias e promessas, nada de pedidos e cantadas. Era só... Apertei meu bolso sentido os contornos do que ele guardava. Falta muito pouco, querido, muito pouco, tentei sussurrar-lhe de leve, bem devagarzinho.
Como um relâmpago, retomei os nobres objetivos de minha missão que justificam todo esse sacrifício, todo esse pesar. Ele começou a se debater de novo, na esperança de se livrar das cordas. Não queria que ele se machucasse. Implorei aflitivamente que ele fosse prudente e confiasse em mim. Mas ele não entendia.
Ansioso, começo a ter desejos de não estar ali. Talvez se eu afrouxasse as cordas, eu conseguiria correr e correr. Será que ele me alcançaria? Seria que ele correria atrás de mim? Sorte que há para onde fugir nesse mundão enorme. Movimento-me na direção de seu rosto, resoluto a tirar dele a mordaça, mas a possibilidade de que ele queira estabelecer um diálogo é aterradora.
Meu relógio começou a apitar bip bip bip. Não sabia direito o que fazer nessa hora, que eu sabia que chegaria. Olhei para o relógio, calei-o apertando o botão lateral, tirei o que havia escondido no meu bolso e olhei para ele, que acompanhava vivamente todos os meus movimentos.
Estava na hora do ritual começar. Tirei da minha mochila meu celular e uma caixinha acústica. Achei a faixa que queria e coloquei pra tocar no modo repeat. A voz de uma mulher ia invadindo o ambiente e nada podia ser mais perfeito. You're unsure and...
...you're not ready so that must mean I want you / you're unavailable and disinterested and to you I look for comfort
Não, Alanis, ele não deveria saber. Ele não era um desconvidado. Ele me devia algo em troca.
A música foi me acalmando, foi me deixando num estado de êxtase. Finalmente, a hora havia chegado e eu não cabia mais em mim de tanta... alegria?
a million times in a million ways I will try to change you
a million months and a million days I'll try to convince you
Sinto minha face se enrubescer. Ele se debate na cama, a cada gesto meu ele parece entender menos o que está acontecendo. Eu afago seu cabelo, puxo o lóbulo da orelha. Agora não há mais nada pra esconder. Eu sei que vou conseguir te convencer, eu sei que a esperança é a última que morre. Ela resiste nos corações nobres. Ela vence sempre.
I have waited for you and adjusted for you and I'm done
I have deferred to you and enabled you and I'm done
E tudo que eu fiz, o melodrama que se materializou na minha vida, já que a sua continuava como um mar calmo, no seu próprio ritmo, um ritmo meio baiano, meio malandro, meio bolero, o melodrama seguia e tudo indicava que nada ia acabar como nos filmes de Hollywood. Parecia sim, que tudo ficava cutucando e reabrindo a ferida, e a fênix saia das cinzas que eu mesmo havia criado ao queimar meus sentimentos. Acabou, mas logo vinha a recaída. Foi sempre assim.
you're too young or you're too old or you're simply not inclined
you're asleep or you're withholding be that my cue to crave you
E eu colocava alguns objetos enfileirados ao lado da cama, enquanto acompanhava cantarolando a música e saboreava cada palavra como se fosse a primeira vez que eu prestasse atenção a elas, ou ainda, como se fosse a primeira vez que eu estivesse entendendo aquela língua estrangeira. Eu me convencia das nossas diferenças, de idade, de classe, de áreas de conhecimento, de espiritualidade. Será que você entendeu algum dia o que eu tava falando?
several times in several ways I'll try to squeeze love from you
several hours and several ways I'll feast on scraps thrown from you
Migalhas? Eu ria alto. Não sei se migalhas podem definir direito a percepção que eu tinha do que eu recebia de volta. Centro e periferia, dentro e fora, muito e pouco, relevante e irrelevante. Nada disso dava conta. Mas tudo disso já não tinha mais valor. Eu já não precisava mais apertar, não precisava mais pensar em formas de conseguir mais. Já não precisava mais fazer banquete em migalha nenhuma porque a minha fome agora era outra. Eu já não era mais predador, ainda que você parecesse presa, preso e amordaçado.
I have bent for you and I've deprived for you and I'm done
I have depressed for you and contorted for you and I'm done
I have stifled for you and compromised for you and I'm done
I have silenced for you and sacrificed for you and I'm done
Se eu fosse estabelecer uma comparação, assim inocente, entre o tempo em que estive triste, deprimido, que esperei e fiz sacrifícios, e o tempo de alegria em que a sua presença, mesmo que distante, me acalmava o peito, me secava as lágrimas, qual será que ganharia? Mas o tempo é só uma ilusão e você pressente isso. É tudo presente. As minha lembranças vão passando como bolas de fogo, na velocidade da luz, seu sorriso, seu jeito de olhar pra baixo quando não consegue sustentar os olhos que te perscrutam, vorazes. Quantas vezes eu me masturbava sentindo seu corpo, mas ele não era tão quente e brilhante quanto agora, quanto esse que se sacode e pulsa e me crispa e queima de longe. Escuto cada vaso sanguíneo como um rio, uma torrente. Me lembro de você gozando, mas esse você era o você que eu tinha inventado Eu gemo e encosto o ouvido no seu peito.
it won't be long before I am reclaimed
it won't take long and I'll be on path again
it won't be easy for us to disengage
I'm at the end of self deprivation stage
Mas as coisas mudam, não é? A mundo dá voltas, a fila anda, o rio não para de correr pro mar. Veja quanto clichê cabe em alguns segundos... E o inverno chega e cobre todos os vestígios do que uma hora foram apenas flores. Mas o inverno não é triste. Ele apenas é. Como eu. Como essa faca que tiro da mochila. Vejo seus olhos se encherem de terror, você sabe que eu vou fazer alguma besteira, não sabe? Sabe que eu não o amarraria à toa. Você sabe que o começo do fim está chegando. Lágrimas novamente pulam incontidas, seus pulsos vão se arroxeando, numa cor de vinho, que eu queria que fosse a cor dos seus olhos. Vejo você se debater inutilmente ao momento em que aproximo a faca do seu pescoço, o fio quase toca sua pele alva e o calor dos seus movimentos, ela dança e quase ganha vida, brigando com a minha mão que a segura respeitosamente. Num movimento rápido, largo ela como se estivesse queimando minha mão, em cima da mesa de cabeceira. Ainda não é agora que ela cumprirá o seu papel. Logo.
you're afraid of every woman afraid of your inner workings
you cringe at the thought of living under the same roof as me god and everything
Medo. Acho que ela tem toda a razão. Afinal, não é o medo que move as pessoas? Não é o medo que as leva a descobrir novas saídas? Será que o medo poderá me dar a resposta que eu sempre busquei e você nunca quis me dar? E ao meio dizer, meio pensar essas coisas, como se estivesse orando, murmurando sons meio vazios, decido partir para o desfecho. Denouement, diriam os franceses. Pego novamente a faca, que fica pesada na minha mão, gelada e impassiva. Pálida, até que seja trazida a vida. É nessa hora que eu sinto o cheiro do seu medo, sinto ele se tornando quase tangível ao me ver lustrando com a ponta da camiseta e me vendo no metal, ao ver através de mim, um mar de loucura vindo à tona e se materializando ali naquela faca. Vejo você se mexer como um animal que vai para o abate e sinto que é ridículo pedir que você se acalme, pois não consegue ver a lógica por trás de cada gesto, de cada pensamento se tornando ação.
Sei que a Alanis acertou em dizer que você não quer o mesmo texto, nem essas coisas de deus e tals, mas quase não me contenho na vontade de pedir que você reze, que você se arrependa e seja purificado. Passo a ponta da faca na sua pele, desenhando linhas e palavras e subo até que ela fica parada no seu pescoço, que, nesse momento, sua em bicas. Passo o fio lentamente pelo seu pescoço, marcando seu corpo com uma linha tênue, quase imperceptível, que metaforicamente, separa os limites da vida e da morte. Respiro fundo e olho pra dentro. Vejo que você quase desfalece. Nada. O lago continua tão límpido e calmo como num dia de primavera.
a million times and a million ways I've tried to alter to match you
several times every several days I've tried to uncrush on you
Mudar. Certamente muitas mudanças, mas nunca uma revolução de fato. Reformas íntimas que me afastavam de mim o tempo todo e só me trouxeram aqui, de volta ao mesmo banco, no mesmo por-do-sol, o mesmo mar calmo do fim da tarde, quando encostei minha cabeça no seu ombro e tudo fez sentido. Como se aquele fosse o meu destino. Certamente eu tentei te odiar, te substituir, te desconstruir e te ignorar. Uncrush. Mas percebo que o sentimento persiste, não como erva daninha, mas como Boscia albitrunca. Florescendo no Kalahari dos meus sentimentos, sonhos e medos.
A música termina e o silêncio paira, como um prêmio para sua alma cansada, confusa por toda essa festa de estímulos na qual eu te coloquei. E da qual você não pode mais me tirar. Ninguém pode. Enfio rápido minha mão no bolso e convido à luz um novo personagem. Seguro entre os dedos um vidrinho pequeno, transparente e aparentemente inofensivo. Sorrio e percebo que essa é a grande solução. Começo a chorar, e destampo o vidrinho com uma determinação que antes me parecia tão externa, mas que vinha das profundezas de mim, como um terremoto. Coloco na boca antes que qualquer pensamento possa opor ação à razão. Sinto o líquido me invadindo e descer queimando, lembrando-me da minha humanidade, da minha escolha. Doce sabor amargo de tudo que é e do que não foi. E essa cena me lembra da fala final de Romeu:
“Olhos, vede mais uma vez; é a última. Um abraço permiti-vos também, ó braços! Lábios, que sois a porta do hálito, com um beijo legítimo selai este contrato sempiterno com a morte exorbitante. Vem, condutor amargo! Vem, meu guia de gosto repugnante! Ó tu, piloto desesperado! lança de um só golpe contra a rocha escarpada teu barquinho tão cansado da viagem trabalhosa. Eis para meu amor. (Bebe.) Ó boticário veraz e honesto! tua droga é rápida. Deste modo...”
Sinto meus braços ficando pesados, e uma euforia boa vai me dominando, Enquanto sinto chegar no quarto um demônio de asas negras que vai tornando tudo uma penumbra e ri seu riso de escárnio e de vitória, antes que isso aconteça, como terminava a fala de Romeu? Ah, “desse modo, com um beijo, deixo a vida”. Isso. Removo sua mordaça, curvo-me, bent for myself, e antes que você possa se desviar ou reagir, beijo-lhe. Pego a faca, meio inebriado, assustado com o peso dela, e corto seus grilhões. Vejo você se sentar na cama e mesmo sem a mordaça você não produz uma palavra sequer. Mas leio nos seus olhos a compreensão do que era esse grande pesadelo, toda essa situação louca. Vou sendo ensurdecido pelo riso, que lembra o barulho do mar, com ondas bravas, mar de tempestade. Vou me sentindo leve por dentro. Livre afinal. Mas meu corpo vai caindo, fruto podre. Escuto você tentando combater o riso, gritando meu nome. Sinto, seus tapas na minha face, já meio anestesiadas, e tento sorrir, mas não sei se o sorriso se formou, ou apenas um contorcimento, uma careta primitiva. Sinto a escuridão me abraçando, em cada poro. E eu entendo, nesse exato segundo, que ela estava mentindo. Por que repetiria na música, tantas vezes, I am done, se não fosse pra se convencer, acima de tudo, se convencer de que aquilo era possível, de que não era apenas uma ilusão cujo véu cairia no passo seguinte? Não, querido/a, agora sim, I’m done.